O Feminino e o Sagrado um jeito de olhar o mundo

Pequena viagem mitológica que narra o enfraquecimento dos mitos segundo Joseph Campbell


Mitos ficam tolos e  perdem a força se são entendidos literalmente. É obvio que temos que saber ler, por exemplo,  uma lenda que conta que um homem se transformou em pássaro ou coisa assim. 
Esse “saber ler” significa não interpretar como fato historicamente provado, mas sim como metáfora, que é tão real quanto um fato concreto, porém de outro tipo. Mitos são coisas do mesmo tipo que poesia, psicologia, e do que está nas profundezas da psique humana. 
  
Nos estágios posteriores de muitas mitologias, as imagens-chave se ocultam como agulhas num palheiro de anedotas secundárias e de racionalizações; pois quando a civilização passa de um ponto de vista mitológico para um ponto de vista secular, as velhas imagens já não são sentidas ou muito aprovadas”.

Na Grécia helênica e na Roma imperial, os deuses antigos foram reduzidos a meros patronos cívicos, mascotes domésticos ou preferências literárias. Temas herdados não compreendidos, tais como o do Minotauro — o aspecto negativo, sombrio e terrível da velha representação egípcio-cretense do deus do sol encarnado e rei divino —, foram racionalizados e reinterpretados para servirem a fins contemporâneos. O monte Olimpo tornou-se uma Ríviera, plena de escândalos e negociatas escabrosos, tornando-se as mães-deusas ninfas histéricas. Os mitos eram lidos como romances super-humanos.

Na China,comparavelmente, onde a força humanista e moralizadora do confucionismo conseguiu esvaziar razoavelmente as velhas formas míticas de sua grandeza primeva, a mitologia oficial hoje não passa de um amontoado de anedotas a respeito dos filhos e filhas dos funcionários provinciais — os quais, por servirem à comunidade, de uma ou de outra forma, foram elevados, pela gratidão daqueles a quem beneficiaram, à dignidade de deuses locais.

E no moderno cristianismo progressista, o Cristo — encarnação do Logos e Redentor do Mundo — tornou-se, essencialmente, personagem histórica, um inofensivo sábio do campo, do passado semi-oriental, que pregou uma doutrina benigna do “fazei aos outros o que quereis que façam a vós” e, não obstante, foi executado como criminoso. Sua morte é interpretada como uma esplêndida lição de integridade e firmeza.

“Sempre que é objeto de uma interpretação que a encara como biografia, história ou ciência, a poesia presente no mito fenece. As vividas imagens estiolam-se em fatos remotos de um tempo ou céu distante. Ademais, jamais há dificuldades em demonstrar que a mitologia, tomada como história ou ciência, é um absurdo. 

Quando uma civilização passa a interpretar sua mitologia desse modo, a vida lhe foge, os templos transformam-se em museu e o vínculo entre as duas perspectivas é dissolvido. Uma tal praga certamente se abateu sobre a Bíblia e sobre grande parte do culto cristão.”   

Texto de Bia Del Picchia, trechos de Joseph Campbell em “O herói de mil faces”, Ed. Cultrix.

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