O que é literatura infantil?
Minha amiga e editora Lizandra Magon de Almeida escreveu na plataforma Medium um artigo onde se pergunta o que é literatura infantil. No texto ela cita uma experiência que teve numa feira literária, quando descobriu uma leitora mirim do meu livro O LEGADO DAS DEUSAS. Essa história, junto com meu encontro com a Catarina, de 6 anos, que disse que ia pedir para sua professora ler os mitos que estão nesse meu livro porque queria muito conhecer as histórias, mas que ainda só lê bem letras de forma grandes, mostram o alcance, muitas vezes não imaginados, que um livro que a gente lança pode alcançar. Tudo isso encanta de forma quase mágica essa autora aqui! Segue o artigo da Lizandra.
A mágica de reconhecer-se na literatura
Ela chegou com a mãe. Vestido preto de bolinhas brancas. Marias-chiquinhas no cabelo crespo. Um sorrisão e dois olhos curiosos. Parou em frente à nossa mesa na Feira Literária da Zona Sul, a Felizs, e apontou: “Tenho esse, tenho esse e tenho esse!”. Olhou bem pra mim e saiu correndo, rindo. A mãe, que tem uma livraria itinerante e virtual especializada em ciências humanas, relações raciais e literatura infantil (a InaLivros), logo me explicou: “Ela adora esse livro!”.
Um dos infantis? Não, “O legado das deusas”, de Cristina Balieiro. O livro que traz 20 arquétipos de deusas das mais diferentes mitologias, com interpretações da psicologia junguiana voltadas para as mulheres. E que tem um baralho com desenhos da autora para cada deusa.
Entre elas, Oxum. A orixá da beleza e das águas doces, mais precisamente da boca do rio. Garota negra de 4 ou 5 anos, pais donos de livraria, ela tem intimidade com os livros e com a cultura afro. Já conhecia e admirava essa deusa. E ficou encantada de saber que existem tantas outras. De tantas mitologias diferentes. Ela quer saber de onde vêm, suas histórias, seus poderes. Todo dia, sorteia uma carta e pede para a mãe que lhe conte a história.
Volta então à minha cabeça essa pergunta que não me larga:
O que é literatura infantil?
Pensar nisso atualmente anda me dando vertigem, já que os livros para crianças que publico são resultado do meu gosto muitíssimo pessoal e da aposta em autores brasileiros inéditos ou quase, geralmente baseados em temas atuais e em propostas literárias que me encantam. Uns não se encaixam na escola, outros não são o que se espera da boa literatura infantil. Mas diante da alegria da menina ao descobrir nosso panteão de deusas, consigo esboçar uma resposta. É hora de tratar desse tema no plural.
Depois que estive com a autora Jarid Arraes em Belford Roxo , em uma atividade para professores em formação, e vi o brilho da identificação nos olhos daquelas futuras professoras diante da autora e de suas heroínas negras, em total dissonância com os livros da sala de leitura – livros de alta qualidade literária, segundo os cânones dos quais sou academicamente ignorante – ficou muito claro para mim que não há mais como pensar em novos leitores e ampliar o público leitor de nossas editoras e do Brasil como um todo a partir de uma definição estanque e universalizante do que seja literatura para crianças.
“Mais do que não escrever aquilo que sempre se repete no mercado editorial, temos o compromisso de levantar reflexões pertinentes e urgentes, ainda que o processo de analisar tais reflexões seja desconfortável e complexo para muitas pessoas”, posicionou-se oficialmente o Clube de Escrita para Mulheres, fundado por Jarid Arraes, após uma discussão especialmente acalorada esta semana sobre literatura e racismo. Eu não poderia concordar mais.
Então chega outra garota, também negra, igualmente à vontade com os livros. Escolheu “O Jacaré”, um dos mais recentes lançamentos da Pólen Livros, que me parecia até então muito despretensioso. Entreguei o livro pra ela, que ainda não sabe ler, e disse: “Olha só o cabelo dessa menina! Ele muda de cor a toda hora!”. Ela foi folheando as páginas e de repente parou, olhou para mim e disse: “É mágica!”. Pediu licença, sentou-se na calçada, e só levantou depois de folhear todo o livro.
Mágica é a literatura. E, pelo que tenho visto por aí, tem vezes que é preciso ser espelho para que a partir do próprio reflexo se possa ver a beleza do mundo.