O Feminino e os Livros: UM TETO TODO SEU
Na verdade nesse post vou comentar sobre dois livros, porque eles se complementam: UM TETO TODO SEU, editora Nova Fronteira, 1985 e PROFISSÕES PARA MULHERES E OUTROS ARTIGOS FEMINISTAS, L&PM POCKET, 2012, ambos escritos por Virginia Woolf.
UM TETO TODO SEU é um ensaio literário publicado pela primeira vez em 1929 e que se originou de anotações que Virginia Woolf fez para duas conferências que proferiu em estabelecimentos de ensino para mulheres em Cambridge. Ela foca na questão das mulheres e sua produção literária. São questões fundamentais e apesar de escrito em 1929, tem muita coisa de atual, além de explicar muito o porque a produção literária feminina ser tão escassa até o começo do século XX.
A razão do título é que Virginia começa dizendo que para uma mulher produzir literatura ela precisa “ter dinheiro e um teto todo seu”. Justifica isso falando da pobreza das mulheres, que até pouco tempo atrás não podiam trabalhar fora, não podiam herdar, não podiam gerir seu dinheiro (quando o tinham), não podiam conseguir bolsas de estudo, etc. Até para comprar papel para exercer a escrita tinham que depender de outros! Sem isso, como se dedicar a escrita? Ela vai fazer uma comparação fictícia, porém calcada na realidade, entre as condições materiais da universidade para os homens e aquela franqueada às mulheres (baseado no que havia na época na Inglaterra) e a diferença é estarrecedora!
Além disso, não possuiam um lugar privado onde escrever. Escreviam na sala de estar comum da família, onde eram interrompidas com enorme frequência.
Jane Austen escreveu todos seus romances assim. Virginia cita seu sobrinho, James Edward Austen-Leigh, que escreveu no seu livro MEMÓRIAS DE JANE AUSTEN:
“Como conseguiu fazer tudo isso é surpreendente, pois ela não tinha um estúdio próprio para onde pudesse ir, e a maior parte do trabalho deve ter sido feitta na sala de estar comum, sujeita a todo tipo de interrupções corriqueiras. Ela tomava cuidado para que os criados ou visitantes ou quaisquer pessoas fora da família não suspeitassem de sua ocupação”.
Inacreditável mesmo como conseguiu escrever seis romances, além de outras obras mais curtas!
Virginia continua sua reflexão dizendo que as mulheres escreviam preferencialmente romances porque a poesia ou peças de teatro exigem muito mais concentração e elas não tinham “um teto seu”.
Constrói também uma história sobre o que teria acontecido se Shakespeare tivesse tido uma irmã tão talentosa quanto ele e a conclusão é trágica. Como diz:
“…qualquer mulher nascida com um grande talento no século XVI teria certamente enlouquecido, ter-se-ia matado com um tiro, ou terminado seus dias em algum chalé isolado, for a da cidade, meio bruxa, meio feiticeira, temida e ridicularizada”.
Reflete sobre como o ato de escrever, apesar de totalmente pessoal se inserir numa espécie de continuidade entre grandes escritores. Diz:
“As obras-primas não são frutos isolados e solitários; são resultados de muitos anos de pensar em conjunto, de um pensar através do corpo das pessoas, de modo que a experiência da massa está por trás da voz isolada”.
E as mulheres tem muito pouca tradição e história na literatura!
Faz também observações muito interessantes sobre, além de Jane Austen, as irmãs Brontë e George Eliot e algumas outras escritoras.
O outro livro, PROFISSÕES PARA MULHERES E OUTROS ARTIGOS FEMINISTAS, contém uma série de artigos escritos em variadas épocas, todos sobre a condição feminina e a literatura. Mas, o artigo que recomendo com ênfase é o primeiro PROFISSÕES PARA MULHERES, que foi uma palestra que ela deu na Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres, em 1931 e que foi publicado postumamente, no livro A MORTE DA MARIPOSA, em 1942. Nesse artigo Virginia fala de dois “fantasmas”que as mulheres que querem fazer literatura precisam lidar e “matar”: o primeiro é o “Anjo do Lar”. Partes da sua descrição do “Anjo do Lar”:
“…extremante simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. ….Sacrificava-se todos os dias…segundo ela as mulheres se querem se dar bem, precisam agradar, precisam conciliar…”.
Com essas características, como ter liberdade para escrever? Esse anjo ela disse que matou.
Mas o segundo “fantasma” ou problema: o que é uma mulher, como ela se expressa, como se ver sem os preconceitos da cultura, como é ser uma mulher escritora, ela diz que ainda não resolveu. Que ser mulher e profissional, em qualquer profissão é ainda uma pergunta sem resposta, porque essa é uma experiência ainda muito nova( se é nova ainda agora, imaginem em 1931). Essa é uma experiência que, enquanto gênero feminino, estamos começando a trilhar: nos descobrir enquanto mulheres com direitos. De alguma forma, somos todas pioneiras.
Esses dois pequenos livros – para quem gosta de literatura, a questão da voz das mulheres, mulheres escritoras, suas condições históricas – são um prato cheio, além de serem escritos com a elegância , a fina ironia e a profundidade da Virginia Woolf.