Entrevista com Reinaldo Bulgareli: diversos somos todos
Reinaldo sentiu pessoalmente vários tipos de discriminação: foi filho de zelador em prédio de classe média alta (cheguei a ouvir: “não brinca com ele que ele é o filho do zelador”), é gay (como ser gay nesse mundo preconceituoso, isso sim, foi um aprendizado), partilhou com amigos a questão racial (eu era único branco num grupo de jovens negros e… me identifiquei total pela história da discriminação: por ser parado na rua pela polícia, por perceber como era difícil conseguir emprego), lidou com o preconceito contra os menores infratores e a população carente de rua (eu me apaixonei pela rua).
Em vez de vitimar-se ou revoltar-se, ele fez disso tudo uma forma positiva de ação no mundo trabalhando com educação, valorização e gestão da diversidade em órgãos públicos, universidades, organizações, empresas e na própria firma de consultoria Txai (http://diversossomostodos.blogspot.com.br/). Esse também foi o tema de seu livro “Diversos somos todos”. Reinaldo traz um antidoto para nossa atual fase de tanta intolerância e discussão estéril: “as pessoas que vejo como admiráveis tem capacidade de enxergar a realidade, propor coisas, fazer, se refazer, se reconstruir, de mudar… Às vezes sou agredido, enfrento situações bem duras. Mas tento não ficar irritado, ofendido – afinal, se eu lido com o preconceito, a minha mensagem tem que ser de acolhimento e aceitação!”
INFÂNCIA POBRE EM AMBIENTE RICO
Eu nasci no centro da cidade de São Paulo. Minha mãe tinha trabalhado como empregada doméstica e meu pai como faxineiro, porteiro, essa coisa toda. Pela ótica deles, nasci numa fase boa da vida e eles sempre me jogaram na cara: você nasceu num berço de ouro!
Meu pai era zelador em prédios de moradores da classe média alta … Zelador, na verdade, é pobre e
vive dentro de um ambiente rico, então enfrentei muitas contradições na infância: é interessante eu não ter dinheiro para nada e morar num lugar onde os amiguinhos da mesma idade tinham muito mais do que eu. Tive que aprender a lidar com essas coisas… às vezes fui humilhado, discriminado, cheguei a ouvir com 5, 6, 7 anos: “não brinca com ele que ele é o filho do zelador” e ”ah esse menino está aqui dentro de casa…cuidado que ele vai pegar alguma coisa”.
Também teve muito acolhimento, era bem tratado por muitos moradores bacanas e brincava com muitas das crianças do prédio. Mas por isso convivia com crianças que tinham brinquedos maravilhosos, coisas fantásticas! Claro que eu gostaria de ter aqueles brinquedos! Então desde sempre tive que lidar com essa coisa de rico e pobre, das diferenças.
MODELOS DE VIDA: AS PROFESSORAS QUE TINHAM BRILHO NO OLHO
Meu herói, ou melhor, minhas heroínas infantis eram as professoras. Eu me lembro de uma professora em especial que me chamou a atenção logo no primeiro ano. Essa professora tinha um brilho no olho… ela fazia o que gostava! Eu era criancinha, mas sentia isso e criança sente bem. Ela tinha um brilho no olhar e um jeito de conduzir a turma ao conhecimento, a nos levar a sentir prazer em conhecer coisas novas, de nos expandir, de despertar e matar a curiosidade da gente, que me encantou.
A partir dela passei a admirar os professores. Tanto é que sonhava desde criança em ser educador. Eu não sonhava mais nada, não queria mais nada da vida, a não ser me tornar um educador.
SER GAY NESSE MUNDO PRECONCEITUOSO
Também me descobri gay muito cedo, com 5 ou 6 anos eu sabia que era gay. Nunca tive dúvida. Já como lidar com isso de ser gay nesse mundo preconceituoso, isso sim, foi um aprendizado.
Eu lembro que uma vez, com 7 anos, fui pedir algo para o meu pai. Meu pai me tratou tão mal! E eu não conseguia entender. Muitos anos depois fiz a leitura: era o jeito de eu falar. Eu devia ser um “mocinho muito delicado”! Como era para ele lidar com isso, com esse criancinha meio estranha? O curioso é que, no meu caso, na minha experiência, eu não me reprimi e não me senti reprimido, mesmo levando paulada.
Na adolescência tive que lidar com o como ser gay: como revelar, para quem revelar, como lidar com isso numa sociedade que odeia os gays. É complicado você ter que fingir dentro da sua própria casa, para os seus próprios pais, para a sua própria família, para aquele ambiente que você supõe que é protetor, o acolhedor, o que te ama. Como me ama se não me aceita? Se eu não posso dizer o que eu sou? Mas não vivi nenhum drama! Eu me aceitava sem problemas, e soube desenvolver minhas estratégias de sobrevivência desde a infância.
Por aí dá para ver que o tema da diversidade desde sempre esteve presente na minha vida como experiência fortemente pessoal. E também o encantamento com a Educação, com E maiúsculo, os dois temas que vão nortear a minha vida e minhas escolhas de adulto.
NESSE PAÍS COM METADE DA POPULAÇÃO NEGRA, SER NEGRO É SER NADA E SER BRANCO É SER NORMAL
No colegial, um amigo meu, Renato, o único negro da sala, me fez um convite: “você não quer criar comigo um grupo de jovens na minha igreja”? Fui. Era um grupo de jovens negros, e eu era único branco. Criamos o grupo de jovens e não foi por falta de convite a outros jovens brancos que o grupo ficou daquele jeito. Eu não sei se pela minha história e pela sensibilidade me identifiquei total, pela alegria, pela música. E também me identifiquei pela história da discriminação: por ser parado na rua pela polícia, por perceber como era difícil conseguir emprego.
Eu nunca tinha pensado na questão racial. Com os negros eu aprendi a ser branco, a me reconhecer. A ver como nesse país, com metade da população negra, ser negro é ser nada e ser branco é ser normal! Isso me deu sensibilidade para o resto da vida para a questão da discriminação racial.
Nós descobrimos que existia uma organização de pastoral de juventude na
cidade, então me engajei mais na articulação da regional, dos bairros, depois na pastoral da juventude da arquidiocese de São Paulo. E foi nesse contato que nosso grupo percebeu que era atípico, que era muito rejeitado. A turma olhava para gente, aquele grupo só de negros, e assustava, causava estranheza! Nesse contato a gente se descobriu diferente – e eu junto, transitando nesses dois mundos e percebendo todas essas questões.
Nunca mais na vida isso saiu da minha cabeça. Não só da minha cabeça, mas também do meu corpo, do meu coração, porque foi uma vivência muito forte. Foi e é porque eu nunca me afastei da comunidade negra. É uma constante na minha vida, e já são 38 anos. Já vi muita liderança do movimento negro nascer!
TRABALHO NA RUA, EDUCAÇÃO SOCIAL, DIREITOS DO MENOR
Outro aspecto da experiência naquele grupo foi de fazer uma ação social com a população de rua, que já no final dos anos 70 era gritante. E eu me apaixonei pela rua! Foi outra coisa que me marcou profundamente, olhar o mundo da rua e não de dentro dos prédios.
Eu tinha que ganhar a vida, era pobre, não tinha dinheiro para condução, passava frio pois não tinha dinheiro para comprar roupa. Mas tinha que arcar com a minha escolha. Percebi que não dava para trabalhar dentro de um escritório: eu gostava mesmo era do trabalho na rua e das questões sociais, do que hoje a gente pode chamar de temas da sustentabilidade, desenvolvimento, agenda de direitos humanos… Era isso que me encantava.
Do grupo de jovens e da Pastoral de Juventude fui parar na Pastoral do Menor, e lá fui o líder do grupo de Educadores Sociais de Rua, o primeiro do Brasil. E nessa época começou-se a repensar o tema dos direitos da criança e do adolescente. Como educador de rua eu tinha uma militância pelo Brasil inteiro, compartilhando minha experiência. O UNICEF tinha um programa para fortalecer a atenção a crianças de rua e usava a nossa experiência em São Paulo como exemplo. Esse trabalho da educação de rua acabou nos levando a ter contato com Paulo Freire, e me tornei amigo dele.
E essa história também me levou a fundar, junto com duas ou três outras lideranças, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua: estava claro para mim que devíamos trabalha para mudar as políticas públicas.
Uma tarefa importante era a gente se articular para a Constituinte de 1988. Só sei que a gente conseguiu a emplacar o artigo 227 da Constituição, que é o que trata de direitos da criança e do adolescente e que mais tarde resultou no Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990. Em 1986, com 25 anos acabei escrevendo um livro chamado “É possível educar na rua”? Com 27 anos fui parar na da Secretaria do Menor.
UMA PARTE DE MIM SE FOI
Eu entrei e sai da faculdade várias vezes e não terminei nenhuma. Eu tinha toda essa militância, viajando para todo lado para disseminar as ideias: era uma coisa bacana, muito prazerosa e importante. E por outro lado eu tinha o trabalho na rua, que nunca larguei.
Na última tentativa de estudar, eu estava na PUC, ela estava em greve… Um dia morreu um menino que eu gostava muito, que eu conhecia desde pequeno. Tinha sido uma luta tirar ele da rua, ajuda-lo a construir um projeto de vida que tivesse significado e um sentido de vida. Ele morreu eletrocutado em cima de um trem. Então, fui cuidar de fazer o enterro do meu amigo – e ali uma parte de mim se foi, e o que foi embora foi a escola. Ficou claro que eu tinha que fazer uma escolha. Não foi um desprezo pela universidade. Nunca encontrei problemas porque nunca deixei de estudar, apenas deixei a escola. Naquele momento foi uma decisão muito difícil.
FAZER O TRABALHO QUE EXIGE O MELHOR DE MIM TAMBÉM TRAZ O MELHOR PARA MIM
Saindo da Secretaria do Menor, recebi convite para ir montar o escritório do UNICEF na Amazônia. Fui para Belém e foi fantástico trabalhar com a ONU em direitos humanos da criança e do adolescente. Em 1998 recebi um convite para voltar a São Paulo para dirigir o Projeto Travessia com crianças em situação de rua, mantido pelo BankBoston junto com o Sindicato dos Bancários. Era a experiência que faltava na minha vida: o meio empresarial. Atuei nesse projeto por uns meses, depois dirigi a área de responsabilidade social na Fundação BankBoston. Saindo do banco em 2001, criei minha empresa e fui dar consultoria em parceria com outros consultores. O primeiro cliente foi o Banco Real. Em 2003 resolvi atuar sozinho para dar conta de um novo desafio, a doença de minha mãe que passou a morar comigo e exigia total atenção.
Tenho uma empresa, a Txai Consultoria e Educação, dou notas fiscais, emprego gente, mas não me apresento ou me identifico como empresário: sou é um educador! Sou um educador e isso implica em também ser educado o tempo inteiro.
Se existe um momento em que sinto a transcendência é quando dou minhas palestras, cursos, quando estou com grupos: é quando estou no melhor de mim. Nesses momentos eu sinto a transcendência, não sou só eu, é algo mais: sou eu, toda minha bagagem, toda minha história e algo mais. E isso é o brilho no olho e a camisa suada. Camisa suada porque você tem que estar ali inteiro. E naquele momento, fazendo esse trabalho que exige o melhor de mim, também sinto que aquilo traz o melhor para mim. É o alimento que eu recebo. É isso.
DAR A POSSIBILIDADE DE BRILHO NOS OLHOS: UM PROJETO DE VIDA COM SIGNIFICADO.
Essa tranquilidade que tenho hoje eu acho que sempre tive, mesmo trabalhando com temas pesados e até enfrentando tragédias. Nunca gostei de pieguice, nunca gostei de uma abordagem pesada e triste para falar desses temas: para mim sempre foi com leveza!
Hoje eu trabalho com voluntariado, ou seja, gente bacana que tem disposição para ir ajudar os outros e a gente propõe de fazer isso sempre com alegria, sempre com uma visão boa até para lidar com a morte, até para lidar com situações muito difíceis, como crianças com AIDS, câncer, essas tragédias da vida. Ou na própria luta contra o racismo.
Talvez seja meu olhar de educador que me faça ver assim: oferecer oportunidades e condições para as pessoas realizarem suas escolhas e construírem suas saídas, seus projetos de vida.
O lema da Txai, minha consultoria, é que a sustentabilidade mora na qualidade das relações. Não vou encontrar paz enquanto não envolver o outro. E também não vou conseguir ajudar o outro enquanto não conversar e respeitar suas escolhas.
Eu quero estar em coisas em que meu olho brilhe! Uma vez, em um desses trabalhos, as crianças fizeram uma homenagem para mim. Foi a melhor homenagem que eu já recebi na vida! Um menino falou: “o brilho nos teus olhos orienta a gente”! Aí eu pensei: “eu não quero fazer nada na vida que não me dê esse brilho, onde esse brilho não esteja presente e não só pelos outros, mas por mim”. É isso cara, eu quero brilho nos olhos. E era também isso que eu queria, que trabalhava, para ele ter também. Não era só oportunidades na vida, isso eu logo entendi. Não é só dar dinheiro, dar uma casa, dar coisas: é dar a possibilidade de brilho nos olhos, dar um projeto de vida com significado.
SE EU FOSSE MULHER, ACHARIAM QUE EU NÃO ESTAVA FAZENDO MAIS QUE A OBRIGAÇÃO
Um dia meus irmãos me ligarem no trabalho e disseram que nossa mãe não poderia mais morar sozinha e que a estavam levando para morar comigo. Ela estava com um tumor na cabeça e, apesar de não ser câncer, ela já tinha 81 anos e tinha levado um tombo.
Por um curto período de tempo eu fiquei dividido: “eu quero visitar meus amigos, quero ir a festas, eventos, quero viajar, quero fazer tudo o que eu fazia antes”! Então eu percebi: a escolha é minha. Eu posso chorar, reclamar o resto da vida, posso abandonar minha mãe, posso botá-la num asilo, posso devolver na porta de quem me trouxe. Ou posso acolher e curtir o que tiver de melhor nisso.
Para mim era coerente cuidar dela. Se cuidei de tanta gente, tanta criança de rua, tantas tragédias que eu me envolvi, como não vou cuidar de alguém de dentro de casa, da minha mãe? E cuidei dela de novembro de 2001 a janeiro de 2009, até ela falecer, com quase 90 anos. Até nos seus últimos momentos era duro, ela chamava meu nome o tempo inteiro. Mas foi também uma parceria, uma dependência, claro, pela situação dela, mas tinha um quê de parceria. Eu ganhei uma filha e uma amiguinha.
O pior foi que perdi muitos amigos que não souberam entender o novo Reinaldinho desta história. Mas não posso impor os meus valores para os outros. E duas coisas me ajudaram a viver isso. Em primeiro lugar minha mãe, que foi uma pessoa racista e intolerante, foi ganhando uma docilidade, uma coragem no enfrentamento da situação que ela vivia, que foi uma lição para mim e me facilitou a vida.
E a outra foi a solidariedade de todos com um homem que se dispõe a fazer isso. Eu sabia da solidariedade que se tem com homens que cuidam de crianças, de filhos doentes, de mães, de pais, porque não é o que é esperado de um homem. Se eu fosse uma mulher, achariam que eu não estava fazendo mais que a obrigação! As pessoas não entenderiam o meu desespero de ter que sair de um lugar correndo, de ter um celular de emergência que deixava ligado durante os eventos, para que, se acontecesse alguma coisa, sair correndo para o hospital. A solidariedade em torno de um homem que cuida de uma mãe é uma coisa impressionante, as pessoas me tratavam muito bem. Eu sabia que isso era um sinal do nosso machismo, mas curti porque eu precisava.
UMA DAS MINHAS MAIS FORTES CRENÇAS É NA CAPACIDADE DE MUDANÇA DO SER HUMANO
Não sou ateu, mas não tenho uma religião. Procuro pensar: “e se não existir nada? Mesmo assim a gente está evoluindo, mesmo assim a gente está crescendo, mesmo assim tudo isso precisa ser feito, mesmo assim precisamos lutar para mudar o que deve ser mudado”.
Uma das minhas mais fortes crenças é na capacidade de mudança do ser humano. Não sei aonde, nem como aprendi a acreditar nisso, mas é uma crença muito boa e pela qual eu agradeço. Acredito que a gente muda, acredito que eu mudo e que, inclusive, temos que tomar cuidado porque também podemos mudar para pior.
Acho que o contato com crianças infratoras, assassinas, que roubaram e fizeram coisas muito cruéis, me deu essa visão de que a gente pode mudar. Ver pessoas que praticaram violências horríveis, que você detesta e não aceita, mas que mudaram, se reinventaram, é o que me fez pensar desta forma.
Ver isso foi uma benção para mim. Muitas vezes gente que detestei, que achei um ser humano horroroso, vi mudar e se tornar uma pessoa decente. Aliás, as pessoas que vejo como admiráveis têm essa capacidade de enxergar a realidade, propor coisas, fazer, se refazer, se reconstruir, de mudar. De não ficar preso, de não estar aprisionado numa posição ou ideia, mas de estar aberto a mudanças, à própria reinvenção de si, do mundo!
SE EU LIDO COM O PRECONCEITO, MINHA MENSAGEM TEM QUE SER DE ACOLHIMENTO E ACEITAÇÃO.
Isso me dá força para lidar com executivos racistas, machistas, gente da pior categoria do ponto de vista de caráter mesmo. A maior parte do tempo sou paciente com essas pessoas. Muita gente me pergunta como consigo ter esse tanto de paciência… Acho que é por ter essa forte crença na possibilidade de mudança do ser humano, na capacidade das pessoas se recriarem.
Às vezes sou agredido, enfrento situações bem duras. Mas tento não ficar irritado, ofendido – afinal, se eu lido com preconceito, a minha mensagem tem que ser de acolhimento e aceitação. Não é nada fácil lidar com crenças tão profundas! Então sou muito simpático, conto piadas, faço gracinhas, sou legal, pois o tema que eu trago é muito duro e é interpretado muitas vezes como uma acusação.
E hoje também tenho casos lindos para colecionar de executivos que mudaram suas posturas, mudaram o jeito de lidar com a vida, com a esposa, os filhos, os Outros, os “diferentes”!
Então eu acredito: “hoje é assim, mas amanhã pode mudar”!