É impossível ser feliz sozinho?
Teve muitos, mas o que a espantou é que nos melhores mesmo ela estava sozinha.
Falou de uma tarde em que, em Londres, sem celular e sem precisar falar com ninguém, ficou vagando pela cidade sentindo-se livre, em “comunicação total comigo mesma”, sem depender de nada e de ninguém, “numa sensação de poder completo, no mais alto nível.”
Sei exatamente do que ela estava falando.
Lembrei da percepção de extrema felicidade que tive numa estação de trem, por coincidência também na Inglaterra, no meu caso lá pelo interior do país, quando de repente percebi que não queria mais nada do que tinha naquele exato momento da vida, e que tudo cabia embaixo do meu gorro!
Não tinha compromisso com ninguém, e eu mesma carregava tudo de que precisava: casaco e gorro de lã, mochila com meia dúzia de roupas, passaporte, passagem de trem, um pouco de dinheiro na carteira e um pouco de credito no cartão, uns livros e cadernos, olhos para olhar, pernas para andar, boca para comer e calar.
Foi uma epifania. Uma transbordante onda de alegria, completude e, sim, como ela disse, poder. Pareceu-me que nunca tinha sido tão feliz como ali.
Claro que vivenciei experiências de maior êxtase e impacto, mas aquele momento foi especial porque foi um insight puro, sem exigências à vida, ao futuro, a alguém, a algo.
Em uma maravilhosa crônica chamada Pequenas Epifanias, Caio Fernando Abreu escreveu: …” Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.”
Melhor para quem a tem cedo, mas me parece que a aprendizagem do não pedir, do se bastar e de sentir o poder que a autonomia nos traz geralmente chega mais tarde, quando já percorremos um bom trecho de estrada. Talvez faça parte do pacote da descoberta de nós mesmos, e por isso traz a sensação de poder.
Por exemplo, uma amiga me disse que quer um novo amor, desde que ele não impeça que ela tenha seus momentos de solidão e liberdade, que custou tanto para descobrir e valorizar, e dos quais agora não abre mão.
Não falo de uma auto suficiência egoísta, mas a daquele Buda gordinho dos restaurantes chineses, que contém o cosmos inteiro em sua grande barriga, e ri, satisfeito, aberto… Tudo tem, tudo acolhe, goza do grande espetáculo humano sem desejo nem censura, está sozinho e todos se sentem bem a seu lado.
Enfim, talvez felicidade tenha menos a ver com estar sozinho ou não, e mais com o espocar de pequenas epifanias, as jóias que estão por aí, encravadas no cotidiano.
Sejam elas o que forem: às vezes um par de alianças de ouro que nos ajudam a rolar pelos trilhos da vida, e outras vezes um solitário diamante que reflete o mundo em espelhadas arestas multifacetadas.
Texto e fotos de Beatriz Del Picchia
Minha vivência dessa epifania que a Bia comenta veio há uns 3 anos atrás, quando minha filha, num dia das mães, me perguntou o que eu queria. Eu pensei, pensei,pensei…e descobri que não queria NADA!!! Minha vida, como ela era, estava plena!
Cris
Eu vivi isso quando passei 28 dias quase sózinha no Matutu. Não precisava, nem desejava mais nada… É muito bem saber disso!
Muito bom Bia querida seu texto,gratíssimo! precisamos acreditar em nossa materia prima humana pra se bastar, nos cobrar mais em exercer os direitos aos nossos fantasticos valores humanos…
Viva Matutu!!! todo dia , toda noite de via lactea é pura epifania..solitude, integração, vacuo…felicidade eterna!
Sim, Mit, e que algum dia o Matutu seja aqui!
bjs
Amei o texto!
Cris, me sinto exatamente assim e também respondi isso para minha filha há algum tempo… é uma sensação indescritível ter a alma preenchido por essas pequenas epifanias, muitas delas vindas de mim mesma.
Bel