Dificuldades nos caminhos e a Jornada do Herói
Vai – sem saber para onde;
traze – sem saber o que;
o caminho é longo, a senda desconhecida;
o herói não sabe como chegar lá sozinho.*
Certa vez, eu e a Cris planejamos com bastante antecedência uma viagem ao vale do Matutu. Não foi fácil nos livrarmos dos compromissos para ir, mas finalmente botamos o pé na estrada.
E vimos que as dificuldades estavam apenas começando. O carro quebrou, pegamos outro, que furou o pneu sem ter estepe; a estrada ia ser bloqueada em determinado horário, mal dando tempo para passarmos, e os problemas seguiram por aí afora.
Em determinado momento, tudo ficou tão complicado que perguntamos uma para a outra: – Será que não é para a gente ir? Melhor voltar?
Com isso não quero dizer que acredito que temos um destino marcado, sem livre arbítrio ou autonomia para decidirmos, mas que as circunstancias externas (por ex, a facilidade ou dificuldade do caminho) e internas (nosso desejo e motivação de ir) estão ligadas no que Jung chamou de unusmundus.
Dentro dessa concepção, insistir num caminho que não é o nosso não vai nos trazer nada de bom; por outro lado, desistir de nosso caminho porque está dando trabalho é perder uma chance de realização.
Mas como é que se pode reconhecer a diferença entre uma coisa e outra? Ainda mais se numa Jornada (como numa peregrinação) são esperadas muitas dificuldades?
Para muitas tradições espirituais e algumas linhas psicológicas, a tal ligação externo-interno está escrita numa tinta invisível, que pode ser, ao menos parcialmente, decifrada. Essa é a intenção dos oráculos, por exemplo. Há também os mestres aconselhadores, os sonhos, etc.
Na Jornada, nesses momentos de incerteza o herói é submetido a uma prova que não testa apenas sua resistência e coragem, mas também a confiança em sua intuição, que vou chamar de fé. Muitas vezes, fé em algo que ele nem sabe o que é.
Assim como nós, em nossas cotidianas e menores dificuldades, ele tem que superar o medo de estar enganado, de que pode não encontrar nada depois de tanto sofrer, e a duvida de que existe mesmo algum sentido naquilo tudo.
Para esses momentos, gosto de lembrar que Jung disse que não devemos nos preocupar muito, porque o que procuramos também nos procura.
Se a gente tiver feito algum trabalho de conscientização conosco mesmo, se tiver “limpado a casa” psicologicamente, vai ficar mais fácil ouvir aquilo que nos procura. O trabalho psicológico tem de vir antes, para que a intuição não se confunda tão facilmente com desejos, medos, complexos, ansiedades, ilusões.
Assim, pode surgir uma espécie de voz interna, um “saber por dentro”, que nos diz quando é melhor seguir em frente ou mudar de rumo.
Ela é sutil e inconstante mas, se afinarmos o ouvido, tem o som da verdade.
Nesse caso da viagem ao Matutu, a Cris e eu nos concentramos e procuramos ouvir o que intuíamos sobre isso. Chegamos as duas à mesma conclusão: enfrentar tudo e seguir em frente. Fomos; depois de outras peripécias, passamos lá alguns dias inesquecíveis e sim, com algo de peregrinação e de transformação para todas.
Fiz e faço viagens desse tipo, que normalmente exigem aventuras para chegar ao destino. Tenho pego ameaçadoras nuvens de vulcões, atoleiros, greves de transportes, quebra de carros, encrencas variadas aí pelo mundo.
Eu vejo essas pequenas provações como metáforas da etapa da na Situação Limite da Jornada do Herói, algo que nos muda e nos leva a destinos especiais, para fora e ao mesmo tempo para dentro de nós, onde está a bliss e o encontro com o que nos supera.
*(Conto de fadas russo, coletado em “A Busca – uma jornada pelo caminho interior”, Jean Sulzberger, Ed Pensamento)
Texto e criação gráfica de Beatriz Del Picchia, desenhos Cristina Balieiro