As cobras do caminho
Texto de ANDREA FORTES
Nossa amiga Andrea Fortes escreveu no seu blog um artigo onde citou a gente e a Jornada do Herói . Gostamos tanto que pedimos a ela para reproduzí-lo aqui!
E se você quiser conhecer o blog dela, que recomendamos porque é BEM legal, o endereço é : http://mundorosadedeinha.blogspot.com.br/
Quando eu era pequena, morava numa fazenda. Era a irmã do meio. Além dos meus dois irmãos, às vezes tínhamos a permissão de levar também para nossa casa um ou dois amigos. Éramos, portanto, uma verdadeira gangue, com idades em escadinha. Diversão garantida. Hoje eu tive um flash muito forte de uma de nossas aventuras. Não sei de onde saiu, mas ele veio, com uma clareza de dar saudade. Vizinha à nossa casa, no campo do lado, e bem longe (pra mim, que era pequena, beeeeem longe mesmo – não faço ideia de que distância), ficava a casa do nosso tio, já falecido, onde morava minha tia. Nas férias, os primos vinham da capital, Porto Alegre, e nos encontrávamos todos. Às vezes íamos de carro até lá, quando minha mãe nos levava pela estrada. Mas a aventura de verdade acontecia quando íamos a pé, sozinhos, atalhando pelo mato. Quase não dormíamos na noite anterior, preparando nossa grande aventura. Dos fundos da nossa casa, caminhávamos um campo grande (e limpo), numa descida muito íngrime que dava numa sanga (um córrego) no meio do mato fechado. Do outro lado, já na subida, tinha uma grande plantação, geralmente de milho, pela qual tínhamos que passar para chegar na casa da tal tia, a tia Adi. A grande adrenalina acontecia justo na passagem da sanga. Por causa do “perigo das cobras”. Cresci ouvindo minha mãe falar o quanto eram perigosas. E eram. Na região tinham cobras realmente venenosas, com veneno letal e rápido para agir antes de chegarmos na cidade. Ou seja, não havia chance se fôssemos picados. Felizmente, fora algumas histórias bem pitorescas, nunca houve nenhum acidente. Mas sabíamos que elas estavam ali, à espera de um descuido nosso, principalmente no horário de sol quente quando, segundo nossa mãe, elas saíam para passear (belo artifício para que não fugíssemos da “hora da sesta”). Como eu ia dizendo, o ápice da ida à casa da tia pelo mato era atravessar a sanga. Alguns poucos metros de pura emoção porque justo ali havia a grande chance de “darmos de cara” com alguma cobra. Passávamos voando por aquele pedaço do caminho. Meu irmão com um pau na mão, todo machão, e nós, as meninas, aos gritinhos. Chegar ao outro lado não tinha preço. Ou melhor, tinha. Tinha até um gosto. Depois de mais alguns bons metros de plantação, eis que chegávamos à casa da tia e nosso heroísmo era recompensado com um delicioso pote de figada (doce de figo). Não existia figada igual àquela.
Lendo o blog da Bia Del Picchia e a Cris Balieiro (O feminino e o sagrado) e resgatando a jornada do herói de Campbell, me dou conta do quanto estas pequenas histórias marcam nossas vidas. E acabam moldando nossas personalidades. Crescemos e os tais caminhos para o pote de figada cresceram conosco. As cobras seguem por aí, agora travestidas de trânsito, projetos e até com nomes de gente, nas empresas, nas nossas relações. Algumas venenosas de verdade. Outras, nem veneno têm, mas seguem mexendo com nossa imaginação. Pois são elas, da cor que tiverem e do tamanho que forem, que nos ensinaram, e continuam a ensinar, que as nossas vidas não são só flores. As cobras, os nossos medos, estão ali só para sinalizar e para nos lembrar que somos nós os responsáveis pelas nossas vidas. Seres da natureza que são, estão, na maior parte das vezes, apenas assustadas. Dão o bote, picam, quando estão acuadas. Mais do que fugir delas, estejamos atentos às que aparecem nas nossas vidas. E agradeçamos. São elas que nos trazem mais adrenalina e um tempero de real à nossa existência. Como na jornada do herói de Campbell, são as batalhas que reenergizam nossas histórias e nos permitem recontá-las, depois, fortalecidos. E assim, de aventura em aventura, vamos vivendo e aprendendo. E nos tornamos seres mais completos. Há um plano B? Sempre há. Neste caso, ficar em casa e não ultrapassar a sanga. Sem o risco das cobras. E também sem o gosto da aventura e a delícia da chegada. Todos os dias fizemos uma ou outra escolha.