Uma irmandade ancestral, feminina e negra
A devoção à Nossa Senhora da Boa Morte chegou aos cristãos do Ocidente, através da tradição cristã do Oriente. Talvez esse seja o culto mariano mais antigo, iniciado logo nos primeiros séculos do cristianismo. O culto foi trazido para o Brasil pelos jesuítas portugueses.
Dentro dessa devoção, em 1820 foi criada na Bahia a Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte formada exclusivamente por mulheres negras e mestiças – filhas, mães, mulheres e irmãs de escravos. A irmandade começou em Salvador, mas logo depois estabeleceu-se na cidade de Cachoeira.
Quando foi criada tinha duas metas principais. A primeira era comprar cartas de alforria para a libertação de maridos, filhos e outros escravos. Para isso as irmãs vendiam quitutes nas ruas e esmolavam. A segunda meta era preservar os rituais das religiões africanas até então terminantemente proibidos, como o culto dos orixás. Mas, no sincretismo religioso típico do Brasil, começavam as cerimônias e rituais pedindo a intercessão de Nossa Senhora da Boa Morte para libertar os escravos e para conseguirem voltar à África depois da morte.
Durante 68 anos, entre a organização da Irmandade (1820) até a decretação da Lei Áurea (1888), as irmãs faziam um ritual secreto e sem as cerimônias católicas. Apenas rogavam a Nossa Senhora da Boa Morte, rezavam suas novenas e faziam o samba-de-roda (uma dança em que os participantes fazem uma roda e batem palmas).[/caption]
Mas, a partir de 1889 e até hoje, a irmandade passou a se encarregar da organização da festa Católica de Nossa Senhora da Boa Morte, que acontece todo mês de agosto na cidade de Cachoeira e dura três dias. Nessa festa fazem uma procissão, todas vestidas de branco, com turbantes e adereços e carregam uma imagem da Nossa Senhora morta, que tem mais de 300 anos e pertence a Irmandade. Oferecem também uma ceia para a comunidade e samba de roda, além de rituais fechados só para as mulheres da congregação. Como disse uma irmã no final dos anos 2000: “Nós continuamos a cumprir a promessa feita pelas nossas ancestrais, de sempre agradecer a Nossa Senhora pela ajuda obtida”.
Assim como no candomblé, a senioridade é o princípio norteador da hierarquia interna na Irmandade. Somente as irmãs mais velhas dentro do grupo são as responsáveis pelos segredos da instituição, e sua transmissão só acontece mediante longo aprendizado junto às demais componentes do grupo.
A devoção à Nossa Senhora da Boa Morte e sua Assunção aos Céus convive com o culto aos Orixás. Esta religiosidade dupla é um dos requisitos para a aceitação na Irmandade, além da idade e ancestralidade – só podem entrar mulheres a partir dos 40 anos e de descendência de escravos. Como disse Narcisa Cândido da Conceição, conhecida como Mãe Filhinha, juíza perpétua – o mais elevado cargo na Irmandade, membro por mais de 70 anos e Yalorixá do Ilê Axé Itaylê, que morreu em 2014, aos 110 anos: “São duas obrigações separadas: em agosto, trabalho para Nossa Senhora e três vezes no ano, em outubro, em janeiro e em julho, faço as festas do meu candomblé”.
Na sede da Irmandade existe um quadro com a seguinte definição: “Organização privativa de mulheres com vínculos étnicos, religiosos e sociais, também unidas por parentescos consanguíneos ou de fé, deixando fluir a maneira afro-brasileira de crer”.
A cada artigo mais uma luz que me deixam pelo caminho. Gratidão!