O Feminino e os Livros: A ESCADA ESPIRAL
“A ESCADA ESPIRAL – memórias”, como o próprio sub-título diz, é um livro de memórias de Karen Armstrong, publicado pela Companhia Das Letras em 2005. Karen Armstrong é uma autora inglesa, especialista em temas de religião e tem publicado no Brasil, entre outros livros, UMA HISTÓRIA DE DEUS, MAOMÉ: uma biografia do profeta, A BÍBLIA: uma biografia e EM DEFESA DE DEUS.
Karen tornou-se uma aclamada e respeitada autora sobre religiões abraâmicas – judaísmo, cristianismo e islamismo. É também autora de uma biografia de Buda. É uma requisitada palestrante mundial e uma interlocutora importante quando se trata de assuntos religiosos e as questões sobre o recrudescimento do fundamentalismo e a importância da busca da harmonia entre as diferentes religiões. Em 1999 recebeu um prémio do Islamic Center of Southern California por promover o entendimento entre religiões. Em 2008 iniciou um movimento global e atrelado a ONU, chamado Carta da Compaixão, onde importantes autoridades religiosas das mais diversas tradições assinam, comprometendo-se na busca dessa harmonia e reconhecendo que, na essência, todas elas buscam o mesmo sentimento de compaixão e a “apreciação do outro”, nas palavras de Karen.
Fiz essa longa introdução biográfica da autora, porque seu livro de memórias mostra que, apesar de ter chegado hoje nesse patamar de importância, sua vida pode ser vista mais como uma sucessão de fracassos do que qualquer outra coisa e, a meu ver, é isso que a torna tão rica!
O livro começa com um prólogo onde ela conta que com 17 anos, em 1962, entra para um convento para ser freira. Vem de uma família não particularmente religiosa e meio que horroriza seus familiares e amigos com essa opção. Conta-nos que seus motivos foram complexos: em primeiro lugar queria encontrar Deus e transformar-se de uma adolescente confusa, meio a margem do seu meio, insegura e sem querer seguir os caminhos tradicionais das mulheres, numa pessoa sábia, serena , alegra, quase santa!!! Só uma adolescente muito ingênua para pensar isso…Claro que o convento não foi nada do que ela esperava e saí de lá, após 7 anos arrasada e com esgotamento nervoso.
Começa então uma espécie de longo calvário para se readaptar a vida secular. Ela sai do convento e estuda em Oxford em pleno ano de 1969, tempos de transformação do mundo! Tudo era muito difícil para ela: as relações com a família, com os homens, com os amigos, e mesmo nos estudos onde se saia bem, vai encontrar muitos problemas, porque todo seu treinamento como freira a ensinou a obedecer, não questionar e nunca pensar por conta própria, o que é essencial para quem pretende ser um intelectual.
Para complicar, ainda no convento começa a ter vários desmaios e suas superiores os categorizam como episódios histéricos de fundo emocional. Ao sair do convento, os desmaios continuam e ela começa a ter também episódios de “visões” asustadoras que irrompem quando ela menos espera. Tudo isso a afasta mais ainda das pessoas. Consulta um psiquiatra, começa a fazer análise, mas isso também não adianta. Então aparecem também episódios de ausência, de “branco”, onde não tem consciência do que aconteceu com ela. Tem medo de enlouquecer e se torna meio anoréxica, e enquanto isso faz seu doutorado; tem 26 anos.
Então tenta o suicídio. Diz que isso foi um marco em sua vida, porque após esse episódio desiste de ser “normal” e assume sua “desadaptação”. Antes de concluir a tese consegue um emprego como professora em um College em Londres, mas o mais surpreendente, é reprovada em seu doutoramento, o que acaba com a possibilidade de uma vida acadêmica.
Mas logo após vem uma grande libertação; após mais um episódio de desmaio e depois de anos é, finalmente corretamente diagnosticada como tendo epilepsia, o lhe permite ter o tratamento adequado e poder lidar com essa sua condição física e explica seus sintomas!
Acaba aceitando sem grande entusiasmo um emprego num colégio para meninas. Fica lá por 6 anos, mas depois é dispensada. Fica apavorada de como iria se sustentar: está com 36 anos.
Um pouco antes da dispensa havia lançado seu primeiro livro de memórias sobre seus 7 anos como freira – Trough the narrow gate (não traduzido no Brasil) – e acabou dando entrevistas a jornais e canais de TV. Por conta disso é convidada a participar de um programa experimental de um canal que iria ser lançado na tv e nesse programa poderia falar livremente sobre o assunto que quisesse. Ela escolhe falar sobre o cristianismo e sua relação terrível com o corpo, especialmente o das mulheres.
Em função desse programa é convidada pelo canal para escrever e apresentar uma série de documentários sobre religião, focado na figura de são Paulo, num projeto que duraria 1 ano e que deveria ser filmado em Jerusalém, com uma equipe israelense. E, o mais curioso, é que deveriam ser documentários anti-religiosos, que demonstrassem o absurdo e os estragos vindos de uma visão religiosa da vida.
Mas, para fazer esses documentários começa a estudar teologia a fundo e percebe o quão ignorante é e como sua formação teológica da época dos seus estudos como freira foi precária. Vai também “descobrindo” nesse estudos e em sua estada em Israel o judaismo. Percebe que judaismo e cristianismo são vertentes diferentes de uma mesma origem e começa a desconfiar que o islamismo também.
Depois do lançamento desses documentários é contratada de novo pelo mesmo canal para fazer uma série sobre as cruzadas e daí tem que mergulhar no islamismo. O estudo das cruzadas e todos os horrores provenientes dela também a afetam de modo indelével e ela percebe o fundamental de “ouvir o outro”e não se sentir dono da verdade, principalmente em termos religiosos. Dedica-se quse 3 anos ao projeto, mas, os documentários não terminam, o canal pede falência e ela se vê mais uma vez desempregada.
E é nesse momento que decide que se passou 3 anos estudando as profundas desavenças entre as 3 religiões – judaísmo, cristianismo e islamismo – talvez fosse a hora de estudar suas semelhanças e disso saí o livro UMA HISTÓRIA DE DEUS. Ao escrever esse livro se reconcilia com a religião e reencontra a si mesma e define seu caminho. O livro vira um grande sucesso, especialmente nos Estados Unidos e é quando ela se torna uma pessoa internacionalmente conhecida e requisitada.
Quero enfatizar que só contei aqui os fatos que aconteceram com ela, mas no livro, o mais importante, é a honesta e profunda reflexão que ela faz a partir deles e sua transformação psicológica e espiritual: são preciosidades.
E, na página 18 do prólogo, Karen diz o seguinte: “Cheguei mais perto da verdade no final de “Trough the narrow gate”, quando predisse que, em certo sentido, continuaria sendo freira até morrer. Claro que entre a maneira como vivo hoje e minha experiência monástica exitem anos-luz de distância. Tenho grandes amigos, uma bela casa, dinheiro. Viajo, divirto-me, aproveito as coisas boas da vida. Quanto a isso, nada tenho de freira. Contudo, depois de procurar exercer várias atividades e ver as portas constantemente se fecharem diante de mim, acomodei-me nessa existência solitária e me pus a escrever, pensar e, quase que diariamente, passar o dia inteiro falando a respeito de Deus, religião e espiritualidade.”
Acho essa fala fantástica, pois mostra que mesmo um caminho que parece errado, tortuoso, sofrido pode ser o caminho da Alma, do Self, da Bliss. Como ela mesma diz, apesar de parecer que estava andando em círculos estava subindo devagar uma longa escada espiral rumo a seu destino e, como espera, à Luz.
Mulher admirável, essa Karen Armstrong!