O Feminino e o Sagrado um jeito de olhar o mundo

Sobre a alma das coisas

Nesse linda crônica Gregorio Duvivier, ator, humorista, roteirista e escritor brasileiro e neto de Carlos Amadeu Duvivier Byington (1933-2019), um dos pioneiros da Psicologia Analítica no Brasil, fala sobre a alma das coisas e sobre um mundo encantado.

Jung tinha um nome específico pra cada uma de suas panelas. Quem disse foi minha tia Noca, animista como Jung, que acredita na alma dos objetos e das plantas. Tenho certa dificuldade em ver personalidade nas panelas. Mas acho que foi a vida que me estragou.

Depois de ver “A Bela e a Fera”, em que um candelabro já tinha sido um mordomo francês, imaginava quem tinha sido minha poltrona: um ruivo gorducho de pés peludos. O cinzeiro da sala imaginava um doido grisalho, condenado por, em outra encarnação, fumar demais. Tinha me esquecido disso até virar pai.

Minha filha tem um ano, dez meses e uma multidão de amigos inanimados. A sala da nossa casa é uma espécie de Disneylândia particular, onde tudo tem nome, sono, fome. Não pode ver um objeto —um chinelo, uma colher, um controle remoto— que pega no colo e balança como um bebê. “Shhh”, ela diz. “Tá mimindo.” Outro dia levantou a blusa e deu de mamar a um pato de crochê até constatar, pra si mesma, que ele já não estava acordado: “Dormiu no peito”, disse.

Apesar de muito carinhosa com objetos inanimados, às vezes se irrita com os colegas de carne e osso e acaba mordendo seus bracinhos. Já tentamos ensinar de mil formas. “Não pode morder, tá?”, mas ela não responde. Já tentamos um pouco de psicanálise: “Por que você fez isso?”, e ela obviamente não responde e logo percebemos o ridículo de fazer psicanálise com um bebê.

Outro dia brincava com um coelho de pelúcia e o pato de crochê. De repente vejo que o seu dedo estava em riste. “Por que você isso?”, perguntava pro coelho. E continuava, sem levantar o tom de voz. “Não pode morder, tá?”

Não sei se minha filha já entendeu que não pode morder. Mas o coelho parece ter entendido. E isso é um bom começo. E eu, sentado no sofá, entendi um monte de coisa. Entendi por que a gente põe alma nas coisas, e encena peças, e pra que servem as histórias e os mitos —pra ensinar pros outros o que a gente ainda não sabe.

Meu avô Carlos, analista junguiano, tinha uma coleção enorme de bonecos e deitava no chão pra contar histórias sobre o bem e o mal. Não lembro das histórias, mas lembro dele deitado no chão, rodeado de netos e bonecos, em pé de igualdade.

Meu avô mal conheceu minha filha. Morreu no começo deste ano. Mas acho que teriam muito assunto, os dois. E talvez estejam tendo, vai saber, caso esteja vivo em alguma panela, ou algum pato de crochê.

 

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