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Qual Bela Adormecida você quer ser?

Hoje vou falar de um conto de fadas: A BELA ADORMECIDA – contos de fada são formas resumidas de mito.
Na verdade, de duas Belas Adormecidas: a dos estúdios Disney e a dos irmãos Grimm. Vamos a cada uma delas.
Primeiro a do Disney, esse gênio sem dúvida alguma, mas também um homem conservador, nascido no começo do século passado.
Em seus desenhos animados sobre princesas, os estúdios Disney sempre focaram toda a solução das tramas no encontro do príncipe encantado e, isto até bem pouco tempo atrás. Era o amor romântico e os príncipes que sempre salvavam as princesas dos apuros!
Em Bela Adormecida, desenho de 1959, a princesa Aurora, sofre uma terrível maldição da Rainha Malévola: com 15 anos irá cair em sono profundo e nunca mais acordar. É, no entanto, salva do sono eterno por suas três fadas madrinhas – Flora, Fauna e Primavera. Elas descobrem uma forma de quebrar o feitiço: um beijo do verdadeiro amor.
O reino todo também entrou em sono profundo e um enorme espinheiro cresce em torno dele impedindo seu acesso. E é o príncipe Felipe que é apaixonado por Aurora, que também o ama, que vai lutar nos espinheiros com Malévola. Felipe luta com a terrível rainha, que inclusive em um momento da luta vira um dragão, a mata, encontra Aurora, a beija e salva, assim como todo o reino que acorda e eles se casam e são felizes para sempre!

Vamos agora à versão dos Grimm, que a recolheram da tradição oral popular. Nela um casal de reis, depois de muitos anos sem conseguir ter filhos, finalmente tem um bebe princesa e fazem uma festa para apresentá-la ao reino. Existem 13 magas no reino, mas como eles têm somente 12 talheres de ouro, só convidam 12 delas para a festa.
Cada uma delas ao chegar à festa oferece como bênção à pequena princesa diferentes virtudes: bondade, beleza, gentileza, etc. Mas, antes da décima segunda maga desejar algo, chega a maga que não foi convidada e roga uma maldição: quando a princesa chegar aos quinze anos vai picar o dedo em uma roca e cair morta. Como a décima segunda ainda não desejou nada, mas também não pode desfazer todo o feitiço, diz que ela não vai morrer, mas dormir por 100 anos. E assim acontece! E o reino todo também adormece com a princesa e cresce o espinheiro em torno do reino.
Durante os 100 anos, por causa da lenda que uma linda princesa dormia naquele reino, muitos e muitos príncipes tentaram entrar no espinheiro para salvar a princesa, mas não conseguiram atravessá-lo e morreram.
Até que chega o dia em que completa os 100 anos que a princesa dormia. Nesse dia chega um príncipe que também quer encontrar a princesa. Ele vai para o espinheiro e quando chega lá o espinheiro se abre e se transforma em um caminho florido, porque chegou o centésimo ano. Então o príncipe entra, encontra a princesa, a beija e ela e todo o reino acordam e eles se casam.

Vamos agora ver as diferentes mensagens simbólicas que as duas versões transmitem. Na primeira – a dos estúdios Disney – a vida para nós mulheres, só existe se estivermos amando e sendo amadas por um príncipe encantado: ele é nossa única salvação! E, quando o encontrarmos, seremos felizes para sempre, nunca mais passaremos perrengue algum na vida, pois seu amor nos garantirá a felicidade eterna. Quem e o que resolve nossos problemas é encontrar o homem certo, nosso príncipe, que viverá para nos amar e que lutará por nós todas as nossas lutas!
O herói dessa versão é o príncipe. 

Na versão popular, recolhida pelos irmãos Grimm, o problema não foi criado por uma bruxa Malévola, mas por uma maga que não foi convidada. A trama é criada simbolicamente por algo que não aceitamos, por uma parte não integrada de nós (a maga não convidada) e que precisamos de um tempo interno para poder nos transformar e amadurecer e assim estarmos prontos para o encontro com o outro. O problema da princesa é resolvido pelo tempo, não por um príncipe. E pelo tempo interno da princesa: o foco da história não é ele, é ela! 

Na versão Disney a princesa só existe por causa do príncipe, sua relação com ele é simbiótica, como um bebe e sua mãe.
Na dos Grimm ela passa um tempo recolhida para se transformar e depois, mais integrada poder se relacionar, como uma princesa com um príncipe, como iguais. Ela existe independente dele.
Não estou negando o quanto é bom amar e ser amada, ter um companheiro ou companheira na vida. Mas viver em estado de suspensão, “dormindo” enquanto não chega uma “alma gêmea” idealizada, um príncipe que vai nos fazer feliz para sempre, é infantil, ilusório e um desperdício de vida!
Também não estou negando de forma alguma a arte, o encantamento e a magia dos desenhos da Disney. São maravilhosos! Mas também não podemos deixar de perceber as mensagens simbólicas que eles trazem.
Essa questão de que todos os problemas da vida de uma mulher se resolvem ao encontrarmos nosso “príncipe”, que nos acorda para a vida, fez e faz um grande desserviço a todas nós. Tanto que nos desenhos mais atuais esse papel passivo das princesas foi mudado – um belo exemplo é o espetacular desenho ENROLADOS e sua adorável heroína, Rapunzel (mas isso fica para outro artigo).

Mas, voltando a nossa Bela Adormecida, com qual das duas você se identifica: a que dorme o tempo todo até que um príncipe encantado a salve e cuide dela para sempre – como se ela fosse incapaz de cuidar de si?
Ou uma que existe mesmo sem “príncipe”, que aceita que existem tempos de recolhimento, de solidão para se amadurecer e não precisa que ninguém a “salve” da vida?
Qual Bela você quer ser?
 

Esse artigo foi publicado anteriormente no site http://www2.uol.com.br/vyaestelar – na categoria A MULHER E O MITO, na qual escrevo quinzenalmente.
Texto de Cristina Balieiro, ilustração internet.

2 comentários

  1. Considero essa questão muito profunda e difícil de se definir. Sinto que sou uma e outra. As vezes elas brigam internamente e eu fico em frangalhos. Pois o desejo sincero do encontro, da união parece passar pela individuação mas tb por uma entrega profunda onde temos que nos permitir amar e sermos amados, isso é um elemento essencial uma necessidade. Penso que a humanidade estará incompleta enquanto homem e mulheres não perceberem que necessitam um do outro em harmonia para um mundo melhor. Nem mais, nem menos. Acredito que uma parte profunda de nosso ser anseia por essa integração na união dos sexos. E realmente precisamos caminhar juntos e não separados. Sinto que nos momentos em que tive a humildade de me permitir sentir a necessidade do cuidado do outro, sem melodramas, recebi de volta o alimento que tanto necessitava através do outro. Assim como em muitos momentos pude tb sair de mim mesma e oferecer o afeto que outro precisava e que no momento por um senso de humanidade, veio através de um gesto do outro (eu). As vezes transitamos por um e outro arquétipo. Precisamos aprofundar nas mensagens, para questionar sobre o manancial de força existente em cada um. A força que vem de nós mesmos sabe quando precisamos nós voltar para dentro de nós e tb é a força que autoriza que "adormeçamos" quando é necessário. Que assim seja e quem poderá dizer que o despertar virá simbolicamente de dentro ou com uma "mãozinha" (beijo do príncipe)do mundo externo…

  2. Oi, Marilene, obrigada por aprofundar o tema com suas reflexões! Concordo com vc que a entrega ao amor faz parte do caminho da nossa integridade e que uma jornada a dois, num casamento por exemplo, pode ser inclusive um caminho para a individuacão. Acho que o problema (que vejo MUITO no consultório, especialmente com mulheres)é buscar no outro todas as respostas para as questões da vida e querer que o outro cuide da gente para que a gente não tenha que cuidar e chamar isso de amor! Na verdade nesse caso eu nem enxergo o outro e nem vejo ele com direito de existir independente de mim. Ele SÓ existe para ser meu príncipe encantado! Acho o amor entre duas pessoas inteiras, mesmo que bem marcadas pela vida algo raro e coisa de gente corajosa!Abraco
    Cristina

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