O Feminino e o Sagrado um jeito de olhar o mundo

O Feminino e os Livros: O FIO DAS MISSANGAS

Esse é o segundo livro que indico nessa série sobre o Feminino e os Livros que foi escrito por um homem. O primeiro indicado foi escrito por um norueguês, no século XIX e era uma peça de teatro. O de hoje, O FIO DAS MISSANGAS, foi escrito por um contemporâneo, moçambicano, Mia Couto, aliás, António Emílio Leite Couto. Ele adotou o pseudônimo de Mia, apelido da infância porque além do fato de adorar gatos,  seu irmão mais novo assim o chamava, porque não conseguia falar direito seu nome (historinha legal, não?)!

O FIO DAS MISSANGAS publicado no Brasil, pela Companhia das Letras em 2004, é um livro de contos: pequenos contos, todos de uma beleza poética sem igual. Aliás sua linguagem me parece mais poesia que prosa, inundada de belíssimas imagens. E como meu amado poeta Manoel de Barros e Guimarães Rosa, de quem Mia é grande fã, ele lindamente inventa palavras. 

Estou indicando esse livro aqui nessa série, porque grande parte das protagonistas desses contos são mulheres, a maioria totalmente desvalidas e desamparadas. E ora falando em primeira pessoa, ora sendo descritas por um narrador, as personagens falam desse feminino sofrido, de mulheres relegadas ao esquecimento pela desimportância, quase que condenadas à uma não-existência, com uma sensibilidade e delicadeza quase desconcertantes. 
Vejam alguns exemplos: 

Conto A DESPEDIDEIRA – Quando ele me dirigiu palavra, nesse primeiríssimo dia, dei conta de que, até então, nunca eu tinha falado com ninguém. O que havia feito era comerciar palavras, em negoceio de sentimento. Falar é outra coisa, é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes, suspensos sobre o abismo. Falar é outra coisa, vos digo. Dessa vez, com esse homem, na palavra eu me divinizei. Como perfume em que perdesse minha própria aparência. Me solvia na fala, insubstanciada. 

Conto AS TRÊS IRMÃS – De quando em quando, uma brisa desarrumava os arbustos. E o coração de Gilda se despenteava. (…)Por vezes, seus seios se agitavam, seus olhos taquicardíacos traindo acometimentos de sonhos. (…) Dizem que bordava aves como se, no tecido, ela transferisse seu calcado voo. Recurvada, porém, Evelina, nunca olhava o céu. Mas isso não era o pior. Grave era ela nunca ter sido olhada pelo céu. 

Conto A SAIA ALMARROTADA – Na minha vila, a única vila do mundo, as mulheres sonhavam com vestidos novos para saírem. Para serem abraçadas pela felicidade. A mim, quando me deram a saia de rodar, eu me tranquei em casa. Mais que fechada, me apurei invisível, eternamente nocturna. Nasci para a cozinha, pano e prato. Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei sentindo prazer em ter vergonha. (…) Agora, estou sentada, olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E parece que me sento sobre a minha própria vida. 

Conto MEIA CULPA, MEIA PRÓPRIA CULPA – Nunca quis. Nem muito, nem parte. Nunca fui eu, nem dona, nem senhora. Sempre fiquei entre o meio e a metade. Nunca passei de meios caminhos, meios desejos, meia saudade. Daí o meu nome: Maria Metade (…) Engravidei certa vez. Mas foi semiprenhez. Desconcebi, em meio tempo, meio sonho, meia esperança. O que eu era: um gasto, um extravio de coisa nenhuma. Depois do aborto, reduzida a ninguém, meu sofrer foi ainda maior. Sendo metade, sofria pelo dobro.

Que livro lindo! Que escritor fantástico! E que língua maravilhosa é esse nosso português!!!

Texto de Cristina Balieiro

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.