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Conto de fada: como a Mãe Lua livrou sua filha de um mau casamento

Quem disse que contos de fadas tradicionais só tem princesas fraquinhas, mães que morrem logo, reis bobos e madrastas malvadas? Pois esse velho conto africano, que recontei aqui, mostra como uma mãe defendeu a filha de seu genro que não conseguiu cumprir sua promessa.

Também, a mãe não é nada menos do que a poderosa Lua, que será o tema de nosso próximo Encontro de Mitologias do Feminino dia 13/05 , não perca.

Esse conto animador mostra como a Lua muda de aspecto (o que é tão próprio dela) para conseguir o que quer, e como a filha acaba fazendo uma opção melhor, embora meio esquisita, e que ainda gerou… Mas chega de spoiler, leia e divirta-se!

A Lua Feiticeira e sua Filha

A Lua tinha uma filha muito branca em idade de casar. Um dia um rapaz muçulmano a pediu em casamento. A Lua perguntou-lhe:

— Como posso deixar, se você é muçulmano? Vocês não comem ratos, nem carne de porco e nem cerveja! Além disso, ela não sabe pilar (palavra que significa trabalhar com o pilão, utensilio de cozinha usado para triturar alimentos).

Ele respondeu:

Não vejo impedimento porque, embora eu seja muçulmano, a moça vai poder continuar a comer ratos, carne de porco e beber cerveja.  Também não tem importância que não saiba pilar, pois as minhas irmãs podem fazer isso por ela.

A Lua então respondeu:

Se é assim pode levar a minha filha, que aliás é uma ótima garota.

Assim, o rapaz levou a mocinha para casa. Quando chegou lá, disse para sua mãe que a moça com quem tinha casado comia ratos, carne de porco e bebia cerveja, e que era para deixa-la fazer isso a vontade. Acrescentou também que ela não sabia pilar e que suas irmãs tinham que fazer isso por ela.

Dias depois ele saiu para caçar no mato. Na sua ausência, as irmãs chamaram a garota para ir pilar com elas nas pedras do rio. A moça desatou a chorar, e as irmãs brigaram com ela:

– Você está chorando porque tem que pilar?!? Isso não está certo! Você tem que aprender a pilar porque isso é trabalho próprio das mulheres.

E sem mais conversa pegaram na mão dela e a levaram ao rio onde costumavam pilar. Lá puseram-lhe o pilão na frente, entregaram-lhe grãos e ordenaram que os pilasse. A mocinha começou a pilar, mas com uma mágoa tão grande que as lágrimas não paravam de lhe escorrer pela cara. Enquanto pilava ia-se lamentando:

– Quando estava em casa da minha mãe não costumava pilar…

Ao dizer estas palavras, juntamente com o pilão ela começou a sumir pelo rio abaixo, por entre as pedras que misteriosamente se afastavam. E foi mergulhando, mergulhando… até desaparecer.

Ao ver aquele estranho fenômeno, as irmãs do muçulmano abandonaram os pilões e foram contar à mãe o que acontecera. Esta ficou assustada com a estranha novidade e tinha o coração apertado de receio quando seu filho chegou.

Ao ouvir o relato do que acontecera à sua mulher, ele brigou com as irmãs por não terem cumprido as suas ordens. E apressou-se a ir falar com a Lua, sua sogra, para lhe dar conta do desaparecimento da filha.

Muito irritada, a Lua disse:

– A minha filha desapareceu porque você não cumpriu o que prometeu! Agora dá um jeito, porque minha filha tem de aparecer!

– Mas como posso ir ao encontro dela se desapareceu pelo chão abaixo?

A Lua então mudou de aspecto e, mostrando-se conciliadora, disse:

Bom, vou mandar chamar alguns animais para fazer um remédio que obrigue a minha filha a voltar. Vá para o lugar onde ela desapareceu e espere lá por mim.

Quando o muçulmano foi embora, a Lua chamou um criado e ordenou:

– Chame o javali, a pacala (grande antílope africano), a gazela, o búfalo e o jabuti e diga-lhes que compareçam imediatamente nas pedras do rio onde minha filha desapareceu.

O criado cumpriu as ordens e os animais apressaram-se para chegar ao lugar indicado. A Lua também para lá se dirigiu com um cesto de alpiste (grãos que podem ser moídos). Quando chegou ao rio, derramou um punhado de alpiste numa pedra e ordenou ao porco que moesse.

O porco, enquanto moía, cantou:

– Eu sou o porco e estou moendo alpiste para que você, garota, apareça ao som da minha voz!

Nesse momento ouviu-se a voz da moça que, debaixo do leito do rio, respondia:

– Não te conheço!

O porco, despeitado, afastou-se cabisbaixo.

Aproximou-se em seguida a pacala e, enquanto moía, cantou:

Eu sou a pacala e estou moendo alpiste para que você, garota, apareça ao som da minha voz!

Ouviu-se novamente a voz da moça que dizia:

– Não te conheço!

A gazela e o búfalo ajoelharam também junto do moinho, fazendo a sua invocação, mas a moça deu a ambos a mesma resposta:

– Não te conheço!

Por último, o jabuti começou a moer e cantou:

– Eu sou o jabuti e estou moendo alpiste para que você, garota, apareça ao som da minha voz!

A moça então cantou, em voz terna e melodiosa:

– Sim, jabuti, à sua voz eu vou aparecer!

E, pouco a pouco, a moça começou a surgir por entre as pedras do rio, juntamente com o pilão, mas sem pilar. Quando emergiu completamente, parou ali e ficou silenciosa. Os animais juntaram-se todos, curiosos, à volta da moça.

Então a Lua disse:

– Agora a minha filha já não pode continuar a ser mulher do muçulmano pois ele não soube cumprir o que me prometeu. Ela será, daqui para o futuro, mulher do jabuti, pois só à sua voz é que ela tornou a aparecer.

Então o jabuti levantou a voz dizendo:

– Estou muito feliz com a moça que acaba de me ser dada em casamento e, como prova da minha satisfação, vou oferecer-lhe um vestido luxuoso que ela vestirá uma só vez, pois ele vai durar até ao fim da sua vida.

E entregou à moça uma carapaça lindamente trabalhada, igual à sua.

Da ligação do jabuti com a filha da Lua é que descendem todos os jabutis do mundo.

Fonte: Eduardo Medeiros (org.). Contos populares moçambicanos, 1997

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