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Avós de Clarissa – força e sabedoria em tempos difíceis

Suas avós sobreviveram a situações muito difíceis: guerra, perseguição política, fome, frio, campo de concentração, violência, exílio. Apesar de tudo, quando chegaram na América ainda tinham a alma intata, a sabedoria ancestral e o tesouro das histórias que legaram para a menina Clarissa.

“Essas eram as idosas da família do meu pai adotivo. Eram as velhas que tinham sido perdidas e espalhadas por toda parte, da Hungria à Rússia, durante a Segunda Guerra Mundial e depois dela.

As que tinham sido enterradas em campos de trabalhos forçados, tendo sido arrastadas da minúscula fazenda de 150 anos da família e forçadas a se esconderem em buracos no chão, a ir para campos de deportação de papelão molhado, para os “trens da fome” impregnados de urina e excremento, e para lugares ainda piores. (…)

A algumas dessas mulheres faltavam partes dos dedos dos pés e das mãos — alguns por ferimento a tiros, alguns por congelamento. O cabelo delas era comprido e fino, mostrando o couro cabeludo queimado pelo sol, como se elas tivessem sofrido alguma radiação. Era resultado da desnutrição e, como diziam, de tudo o que tinham testemunhado.

Ver velhas famintas e sobrecarregadas irromperem a correr é impressionante. E, no entanto, essas velhas refugiadas estavam exultantes quando se lançaram nos braços do meu pai. (…)

Elas achavam que sua vida estava sendo salva por nós, que por vir para a Ah-me-rí-kah, elas poderiam lavar todos os seus ferimentos na milagrosa terra negra do norte do Meio-Oeste, que uma vida de paz poderia recomeçar.

Elas não sabiam que também tinham vindo para salvar a minha vida. Não sabiam que eram a chuva perfeita, longa e profunda, pela qual uma criança em processo de ressecamento anseia. Elas nos trouxeram riqueza unicamente por sua existência.

Muito embora tivessem sido arrancadas da amada terra natal dos antepassados, tivessem perdido filhos e maridos, tivessem sido despojadas dos seus ícones, da satisfação pelo pano branco que teciam, dos seus locais de culto, da vida das suas aldeias como elas as conheciam, tivessem sido destituídas do simples conforto da floresta ancestral na proximidade da qual viviam e de todas as suas plantas medicinais; embora tivessem sido privadas da capacidade de proteger suas filhas, seus filhos, seu corpo, sua privacidade, seu pudor — mesmo assim, elas tinham conseguido se manter agarradas ao eu essencial e resistente. O eu que não morre, o eu que nunca morre.

Essas velhas foram a primeira prova absoluta que tive de que, embora a película externa da alma seja magoada, arranhada ou chamuscada, ela se regenera de qualquer modo. Repetidas vezes, a pele da alma retorna a seu estado primitivo e intacto”.

Fonte: A ciranda das mulheres sábias, Clarissa Pinkola Estés

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