Colcha de retalhos
Jung disse que alma é imagem.
Lá no fundo, onde o pensamento cessa, somos imagens, como em sonhos. Como sou uma viajante, acrescentaria que, nessa vida, nossa alma também viaja por entre imagens.
Que sorte quando são belas! Mas temos muitas, então há de existir também as sombrias – e me parece que podemos ser perseguidos ou até assombrados por algumas delas.
Uma imagem recorrente em nossa cultura é a da colcha de retalhos, na qual várias mãos femininas tecem, costuram e emendam coisas diferentes.
Talvez por isso a Cristina tenha feito esse desenho, e eu esse texto.
A variedade de retalhos é o que torna uma colcha mais interessante. Imagine que, como nossas avós faziam, cada um teve uma origem diferente: esse era um pedaço do vestido da prima, aquele uma sobra da calça do pai. Cada qual traz para aquela peça a historia de outra, formando uma espécie de assembléia onde estão representados todos os membros da família. Assim como, quando reunidas, cada costureira contava historias e ouvia as das outras, todas diferentes e combinadas entre si.
Existem também colchas formadas por retalhos lisos ou de estampa parecida, nas quais algum tipo de uniformidade tenta conter a anarquia de cores. É a busca de compreensão que se mais se organiza quanto mais emocional for o encontro, é a necessidade de procurar as semelhanças para que um momento compartilhado seja ainda mais belo.
Há ainda as colchas americanas, com aplicações de retalhos recortados e costurados formando historias figurativas; essas são intencionais, planejadas, e aqui no Brasil raramente aparecem. Assim, existem encontros que partem de uma idéia já estabelecida, e ainda bem se deixam espaço para que a arte aconteça.
Uma colcha não é feita apenas pelos retalhos, mas também pelos fios que os unem. Eles podem estar escondidos no avesso (e às vezes são os que mais incomodam), ou podem ser, como os desse desenho, afirmativos, categóricos e explícitos, que logo dizem a que vieram e clamam: estamos aqui, veja!
Por exemplo, nossa amiga Neide está acabando uma coloridíssima colcha de crochê, cujos retalhos são ligados por linhas em relevo, feitas de pontos altos, de um tom cinza escuro que traz o necessário contraste para aquela efusão toda. São essas linhas que dão forma à sua colcha.
Agora, pense em duas pessoas, unidas pela sólida costura da amizade. Depois em um grupo, tecendo um ideal comum; em um instituto, associação, ou em um país, que só dá certo se é formado por pessoas que compartilham algumas idéias, imagens, mitos.
Ou seja, se são unidos por coisas imateriais, finos fios que há quem diga que são irrelevantes.
Para mim, justamente as coisas impalpáveis que nos unem (tanto as pessoas quanto as coisas) é que criam a identidade, a atmosfera daquele pedaço de vida que vivemos com algo ou alguém. É o que fica quando resta só a lembrança, o tom das memórias.
Certa vez, sonhei que todos éramos retalhinhos de uma grande obra, cada qual uma paisagem completa em si mesma, e ao mesmo tempo complemento de outra maior. Estendida na parede infinita, formava uma espécie de mapa vivo, alegre de ver, um tanto confuso, nada discreto: uma colcha de retalhos, onde todos nós brincamos de existir.
Texto de Beatriz Del Picchia, desenho Cristina Balieiro
Que sorte quando são belas! Mas temos muitas, então há de existir também as sombrias – e me parece que podemos ser perseguidos ou até assombrados por algumas delas.
Uma imagem recorrente em nossa cultura é a da colcha de retalhos, na qual várias mãos femininas tecem, costuram e emendam coisas diferentes.
Talvez por isso a Cristina tenha feito esse desenho, e eu esse texto.
A variedade de retalhos é o que torna uma colcha mais interessante. Imagine que, como nossas avós faziam, cada um teve uma origem diferente: esse era um pedaço do vestido da prima, aquele uma sobra da calça do pai. Cada qual traz para aquela peça a historia de outra, formando uma espécie de assembléia onde estão representados todos os membros da família. Assim como, quando reunidas, cada costureira contava historias e ouvia as das outras, todas diferentes e combinadas entre si.
Existem também colchas formadas por retalhos lisos ou de estampa parecida, nas quais algum tipo de uniformidade tenta conter a anarquia de cores. É a busca de compreensão que se mais se organiza quanto mais emocional for o encontro, é a necessidade de procurar as semelhanças para que um momento compartilhado seja ainda mais belo.
Há ainda as colchas americanas, com aplicações de retalhos recortados e costurados formando historias figurativas; essas são intencionais, planejadas, e aqui no Brasil raramente aparecem. Assim, existem encontros que partem de uma idéia já estabelecida, e ainda bem se deixam espaço para que a arte aconteça.
Uma colcha não é feita apenas pelos retalhos, mas também pelos fios que os unem. Eles podem estar escondidos no avesso (e às vezes são os que mais incomodam), ou podem ser, como os desse desenho, afirmativos, categóricos e explícitos, que logo dizem a que vieram e clamam: estamos aqui, veja!
Por exemplo, nossa amiga Neide está acabando uma coloridíssima colcha de crochê, cujos retalhos são ligados por linhas em relevo, feitas de pontos altos, de um tom cinza escuro que traz o necessário contraste para aquela efusão toda. São essas linhas que dão forma à sua colcha.
Agora, pense em duas pessoas, unidas pela sólida costura da amizade. Depois em um grupo, tecendo um ideal comum; em um instituto, associação, ou em um país, que só dá certo se é formado por pessoas que compartilham algumas idéias, imagens, mitos.
Ou seja, se são unidos por coisas imateriais, finos fios que há quem diga que são irrelevantes.
Para mim, justamente as coisas impalpáveis que nos unem (tanto as pessoas quanto as coisas) é que criam a identidade, a atmosfera daquele pedaço de vida que vivemos com algo ou alguém. É o que fica quando resta só a lembrança, o tom das memórias.
Certa vez, sonhei que todos éramos retalhinhos de uma grande obra, cada qual uma paisagem completa em si mesma, e ao mesmo tempo complemento de outra maior. Estendida na parede infinita, formava uma espécie de mapa vivo, alegre de ver, um tanto confuso, nada discreto: uma colcha de retalhos, onde todos nós brincamos de existir.
Texto de Beatriz Del Picchia, desenho Cristina Balieiro